Acordei no meio da madrugada para dizer um recado,

[ para quem e quando? ]
saiba que, assim como a prosa se estica pelas correntes de ar do tempo em que vivemos, e dos outros que viveram, nessa corrente é tudo o que temos, este esvoaçado de palavras e interpretações ao longo do tempo. é necessário fidelidade às palavras, como se elas fossem as nossas mais ternas amigas e tivéssemos de honrá-las no dia a dia, retomando o seu sentido original aqui ou acolá, ou no seu sentido passado e assim lustrar as nossas palavras, cuidar delas, tirar a poeira de alguns, como objetos da prateleira. há uma estante magnífica que é a língua em que nós temos acesso na biblioteca que é a nossa cultura, é encantador pois parece magia para mim ao dizer assim, mas as palavras estão disponíveis para nós, esperando para serem ditas, escritas, ou que sejam sacudidas pela poeira. quão bom é reutilizar uma roupa velha, que estava na família há anos, ou reciclar aquele papel cartão desnecessário da caixa de papelão para escrever um recado ou um protótipo de poesia, pois, assim com as palavras também são. ensaio ouvir o seu muito obrigado quando honramos alguma palavra já não usada, esquecida, ou às vezes, um pouco ruborizada por colocarmos de volta no lugar em que estava. um exemplo disso é um texto que transcreverei da Rachel de Queiroz sobre elitismo, em que ela recupera a palavra elitismo para aquela equipe de melhores, que hoje é tão vulgarizado colocada junto ao lado de burguesia ou privilégios socioeconômicos, um soldado de elite é quase um soldado burguês e ao mesmo tempo desumano e alguém muito atencioso às verdades do mundo, pois é isso que a palavra elite trás ao meu pensamento à mim, assim, usar elite em um contexto em que possa abarcar os seus significados, e ao desenrolar da trama este significado vá sendo ele mesmo, mas que seja possível uma ótica sobre o uso corriqueiro, como recentemente escrevi em um texto sobre idiotice, é de também ressaltar as características originais e esquecidas das palavras - que dão motivo e originam -, assim, é preciso abrir velhos livros de velhas estantes, fazer nosso corpo experimentar as línguas, brincar com os seus trocadilhos e também fazer os miúdos rirem com uma piada de português muito simples, e fazer os miúdos que há em nós rirmos também, pois é engraçadíssimo certos trocadilhos - e quando não muito aqui ou acolá, temos bastante tempo livre para fazer na espera de algum lugar - convido-te a pensar sobre a sua arte enquanto espera, ruminá-la e fazê-la dela o seu ofício, seja tua arte qual for, ter pequenas trilhas de pensamento que levam à nossa fonte original, que sabe se lá de onde veio e nem como é - mas está aqui, a fonte da criatividade está aqui e nós com alegria olhamos para ela com alegria da promessa do que está por vir, do prospecto - e aí ela nos dá de volta o nosso reflexo, o estado das águas do mundo, o estado das águas dos seres naturais como os seres vivos das mitologias em que vivemos, ou as religiões, quis dizer isso para um pensamento sobre as criaturas oportunas que vivem em nossas vidas, como a fada do dente, ou o papai noel, ou o Senhor São Longuinho, que acha depois de três pulinhos, ou então também algo muito comum ou prosaico que é fácil de cair no esquecimento, mas estes seres falam através de nós, e nós falamos através deles, e eles pedem que nós, ou ao menos eu em meu ofício, exerça o dom tão doído que Almodóvar fala em seu Todo Sobre mi Madre, que quando Deus lhe dá um ofício, ele lhe dá junto dele um chicote para flagelar-se com o mal da humanidade, e assim fazer o corpo santo depois de ofertar o desgosto dele em sofrimento do chicote, no filme, a mãe fala uma reação tipo "credo", e como não ter outra, mas o que esta imagem trás, é que sérias considerações sobre a vida se seguem, o demoníaco muda de cara, o estranho se faz familiar, o outro me mostra tudo aquilo que eu poderia ser, isto é o que os meus estudos em psicologia me dizem, mas eu intuo que é nesta fantasia, nesta imaginação, onde reside muitos mistérios, e se eu fui assim responsável por elencá-los à disposição que é para serem, que eu deixe-me ser este que sabe mais irracionalmente, não é capaz de explicar a sua arte, pois penso e imagino que ela é feita pra ser sentida e explicada, e é preciso que ela fale por si só, e assim, eu tenho os meus tutores, os meus mestres educadores e cuidadores da alma, e assim, faço-me na companhia desta boa gente um aprendiz para aprender com eles os segredos do mundo, e quando eu os herdo, sinto que as reações em meu corpo afim de assistir ao meu ofício da escrita, minha senda meu caminho, é como se fossem hora ou outra surpreendidos com um choque avassalador sobre as potencialidades da criatividade e que eu não usava isso ao favor do bem estar comum, o meu ou de outrem, assim sendo, eu levo um choque ou caio de algum abismo para aprender alguma coisa e tomo tempo para aprender, mas podem crer que eu volto, eu hei de voltar dos vales verdes ou escuros que eu visitar, ou das terras áridas, pode crer que após tudo isto, de visitar reinos interiores, reinos interiores exteriores, quando encontro com alguém na rua não estou eu separado, mas junto daquele vibrando neste sentido. queria eu deixar o que é natural em mim crescer, já dizia o Herman Hesse na introdução de Klingor, e ele perguntava antes: porquê é tão difícil? vá saber, eis a própria ardilosidade do chicote, a própria auto-crítica que é uma dúvida que fomenta uma não satisfação, e em busca disso põe a pessoa na busca de uma empreitada na qual ela não sabe onde está se metendo, agora, depois que eu falei estas coisas da psicologia, vou ater-me um pouco para a escrita, e dizer que eu realmente não sei onde me meto, como Mutarelli diz, é mato puro, caminho descampado, e eu aprendi isto no sentido de que tudo é indubitavelmente novo, são surpresas que se depara no caminho, mas eu aprendi a ter certa apreciação por aquilo que faço, de proveito enquanto trabalho em alguma palavra ou em alguma vírgula, sabe, o pessoal na psicologia gosta muito de alquimia, de misturar elementos com outros para criar outros, e vos falo que isto não é tão distante de meu processo de selecionar, criar e misturar as palavras, provavelmente onde isto fica mais evidente é quando falo de cores e tonalidades, e agora quando anuncio isso, fico pensando que talvez a minha senda seja fazer um livro ilustrado, pois penso em começar a ilustrar o mundo que se apresenta diante de mim, vai que ele seja pertinente à quem queira ver como eu vejo as palavras que se constroem. sinto a necessidade de pintar. me lembro de alguém falando que para o filho artista é bom primeiro deixar ele experimentar com os instrumentos musicais e alugá-los antes de comprá-los, e eu suporto isto [ a não ser que se já tenham músicos na família ou que ele goste muito de música ] mas até o menino se decidir, usará caneta, lápis, tinta, papel, acrílica, aquarela, lápis de cor aquarelável, tinta guache, papel couché, papel manteiga, papel de oléo, papel cartão, papel sulfite mais grosso, e assim, sou este menino que aprende aonde a expressividade alcança, mas isto é apenas uma coisa de discurso, até onde a expressividade alcança, porque o que me importa nestas palavras é saber o que cabe de ser pintado visto e o que cabe de ser escrito, as coisas se misturam na minha paleta, o mundo se expande diante de mim, e ao ler hoje o vale do céu celestial, sinto ele mais presente. é isto. mas o recado que eu pensava que eu ía dar para vocês era o seguinte: sinto-me pequeno, mas os grandes escritores são capazes de ouvir as vozes do vento, da natureza, dos corações dos homens, e além disso são capazes de detectar as matizes e cores deste vento que sussurra ao ouvido seus graves, agudos e moderados tons, além de decodificar a língua em que este vos fala, o Vento, são de algum modo o supra sumo da realidade pois misturam as palavras do mundo com as palavras que existem nos livros: eles são capazes de trazer de volta à vida palavras em desuso e ressucitá-las, ou então pingir ou dar uma impressão de uma tonalidade tão forte à uma palavra que aquela palavra que foi tocada por aquele autor e gravada no papel, capturada e feita para a humanidade ver, é como uma marca de nascença de um bebê, está lá e mostra a que ele veio, mas ainda é individual deste coletivo, e agora eu estou falando um pouco de psicologia, mas o que eu queria dizer sobre o ofício que aprendo é; os pequenos são capazes de falar a sua voz, e os grandes, estes são capazes de que com suas palavras, sejam eles mesmos os ouvidos quando os outros os lêem, aqueles que são capazes de antecipar o uso de palavras e se permanecerem atuais quando tanto tempo já passou, são consagrados em papel pois suas vontades cantam a vozes de tantos outros que viveram; é isto que eu eu penso, mas agora, aos pequenos, como eu, cabem à simples descrição do mundo de como ele é, dos jeitos das pessoas sem afetação artística ou da descrição de um mundo que nasce diante de mim tal qual ele é, e de ser justo, sincero e grato à estes elementos; falo de justiça pois eu não posso retratar diferente daquilo que ele é, é necessário ser fiel àquilo que vejo diante de mim, e sincero, pois admito os meus preconceitos e conceitos, e na verdade, me desarmo deles ou acuso eles de pronto quando a imagem me vêm, e grato, de honrá-los através de atitude no dia-a-dia, ou de estabelecer uma relação horizontal com eles, de amizade: se eles me pedem um favor, eu como amigo tenho de fazê-lo, e assim a escrita vai se construindo. há muito favor que eu neguei, eu vos conto o meu segredo doído, eu não acho isso justo com os meus amigos aos quais eu não cumpri o favor, e nem comigo mesmo, mas revelo-me porque isso ao se tornar revelado, é quase uma promessa que faço, que sinto vontade de cumprir como se fosse destino amado e ardiloso, de cumprir e pintar estes que me aparecem, de desligar-me um pouco do discurso explicativo ou justificativo, e entregar-me mais à contemplação e à ação das coisas que se mexem no meu interior e fora de mim. eu sorrio, eu acho que era esse o recado. obrigado. na verdade, o central mesmo era aquela distinção entre grande e pequeno. é isso. pós texto: não engula isso! eu sei lá o que era central. e sorrio. mesmo que eu quisesse, eu não seria capaz de julgar hoje o que é central para mim hoje, isto é coisa que os sábios conseguem fazer, e eu mero humano, vou vivendo as perguntas de meu interior, como dizia Rilke, vai que depois de um tempo passo a viver as respostas. É isso. Não sei o que é bom um ponto final para esse texto, deixa eu escapar ali pela culatra, de finininho com esse três pontinhos agora: Até mais... Não, não quero me despedir, eu gostei tanto de falar estas coisas todas que me deu uma graça interior - algo como uma satisfação - mas agora é sério, eu preciso ir porque não há nada de técnico ou de expressivo para se registrar, apenas a contentação comigo mesmo que mais que alegria que eu escrevi isso. Meu muito obrigado pela oportunidade, pessoa que ouve o meu recado.pós pós texto: ah, recomendo ir na seção de leituras e sons, e ver Pangur Ban, se te apetece saber por onde eu fui depois daqui. saudações!

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